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16/09/2022

70 - MÁQUINA DE NEGAR

Lembrei-me de uns olhos

Lembrei-me de um tapa

Qual cor desses olhos que não quero ver?
Qual força desse tapa que não engulo?

Verde era a cor do olho que me maltrata
Ardor era a voz do tapa que me malcria

Vermelho era a cor do olho que me vigia
Sereno era o timbre daquele toque que me sangrava

Azul era o céu sobre o olho negro que via
Branca era a pele da mão que me batia

Caramelos são os olhos que me assustam em sonhos
Dizendo que o tapa de olhos me levou a óbito

Por óbvio, eram cegos os olhos que não queriam
Eram frágeis os dedos que me cortavam

Quero extrair o caldo daqueles olhos
Quero torno naqueles dedos

Arrancar da lembrança tal precioso câncer
Quero morder a beleza que não cresce com meu medo.

Sou um desastrado arquiteto
De um quarto seguro.

_______

Sobre o contexto do poema:


Participei há bastante tempo de um grupo de discussão sobre cinema/psicanálise, sob a orientação de 
Elisabeth Almeida. Na primeira sessão trabalhamos a lembrança e memória, com auxílio e norte do filme A Valsa com Bashir. O filme conta, em síntese, as memórias de um militar que presenciou cenas terríveis, que de tão terríveis vê as memórias falseadas, como forma de defesa para uma sobrevivência (ver relato do Guga Chacra citado abaixo). Ficou a memória como construção individual do vivido. Resta saber qual desejo motiva a construção, se há uma viga que sustente o caminho e para onde leva. Ficou a lembrança como delírio acerca da realidade. Ficaram muitas dúvidas e o fio para aprofundarmos o estudo. A memória, a cada vez visitada, mora em andar diferente. A memória é algo que nos apoiamos para construir incertezas e dar passos (em falso!) Achei por bem levar um poema na próxima terça que resgatasse o que de impressão restou em minha retina. Daí escrevi o poema acima.

Veja o relato de Guga Chacra sobre o acontecimento histórico:

"Bashir Gemayel, um carismático jovem de 34 anos, havia acabado de ser eleito presidente do Líbano quando morreu em um mega atentado terrorista no sofisticado bairro de Ashrafyeh em Beirute no dia 14 de Setembro de 1982. Líder da Falange, uma milícia-partido cristã maronita fundada por seu pai com inspiração no regime nazista da Alemanha, era aliado de Israel e inimigo dos palestinos, de outras facções cristãs libanesas, de milícias xiitas, sunitas, drusas e também da Síria.

Seus seguidores o viam como uma liderança messiânica.  Não religiosa, mas sectária na expressão mais exata da palavra.

 Seu assassinato não foi tolerado por seus seguidores, que decidiram se vingar. Diante de todos os inimigos que possuía Bashir, decidiram apontar para os palestinos como culpados, apesar de os membros da OLP terem se retirado com suas armas de Beirute semanas antes. Haviam ficado, no entanto, muitos civis palestinos. Grande parte deles vivendo no campo de refugiados de Sabra e Shatila, controlado pelas forças israelenses.

Aliados da Falange (ou Kataeb, em árabe), os militares de Israel nada fizeram para impedir a entrada dos milicianos no campo de refugiados. Ao longo de dois dias entre 16 e 18 de Setembro de 1982, os falangistas massacraram centenas de palestinos, incluindo mulheres e crianças. Não há um número exato, mas estimativas falam em cerca de 2 mil mortos. Ao longo de todo esse período, e sabendo do que ocorria dentro de Sabra e Shatila, os israelenses nada fizeram para conter seus aliados.

Nenhum libanês foi condenado pelas mortes. O irmão de Bashir, Amine Gemayel, acabou eleito para a Presidência do Líbano – não há acusação de envolvimento dele no massacre. Além disso, há inúmeros ataques que alvejaram cristãos, como o  massacre de Damour, em 1976, quando centenas morreram nessa vila cristã.
Uma comissão criada em Israel responsabilizou Sharon pessoalmente pelas mortes por não ter agido para impedir o massacre.

Para completar, não foi nenhum palestino que matou Bashir. O líder da operação foi Habib Shartouni, também cristão maronita. Não integrava a Falange de Bashir, mas outra milícia-partido libanesa cristã." Vide a íntegra do relato