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29/07/2022

25 - MANIAS DO VOVÔ

 

Era outra vez um bom velhinho. O melhor vovô do mundo. Sabia distribuir sorrisos, doces, bênçãos e manias.

Tinha um cabelo branco, penteado para trás com brilhantina em excesso. Porque ele era de um tempo em que brilhantina era a moda e ele pegou o hábito de assim usar.

Vestia roupa nos trinques, toda passadinha. Porque queria estar sempre charmoso e estar bonito não era apenas uma mania.

Só comia na mesa da sala, com uma toalha de pano florida, embaixo do prato branco, meio-dia em ponto.

Tinha um lenço no bolso, sempre azul, um pente e um bilhete de loteria da semana. Apostava nos mesmos números e só ele sabia o porquê. Parece que queria ser um super milionário.

Mas o que o vovô mais tinha era mania, cacoete ou outro nome que se queira dar. Neste quesito, ele já era para lá de rico. Era dono de uma coleção imensa, dava para encher uma caixa de tesouros apenas com as manias do vovô.

27/07/2022

24 - A CHEGADA DO CORONEL

 

Morávamos num pequeno prédio no Bairro Floresta. A rua era tranquila, algumas árvores por perto deitavam sombras e a meninada dominava as brincadeiras da noite e do dia. Eram tantas as invenções que às vezes observadores de outros bairros vinham para levar nossas ideias e truques para outros cantos da cidade.

Futebol de rua, soltar pipa, jogar pião, bolinha de gude, saltar tronco, seguir mestre, esconde-esconde, apertar campainha e sair correndo, tacar mamona, chamar alguns de bola, outros de tripa, caí no poço, queimada e todas que você imagina.

Pois foi sempre assim naquelas infâncias, até que foi anunciada a chegada do Coronel. Foi a mãe do Nem, filho de soldado, que disse:

-No dia 02 de fevereiro, o Coronel muda para o terceiro andar do predinho. Quero ver, meninada, a folia vai acabar!

26/07/2022

23 - KUNG FU BETTA

 

O peixinho recebeu o nome de Tog. Parecia uma sigla, mas como surgiu da imaginação do menino, todo mundo gostou.

Vivia num aquário, com pedrinhas coloridas e uma rama de plástico no meio. Era vermelho, de um vermelho escuro e provocante.

Gostava de se exibir quando aproximávamos.

Parece que ouvi dizer que esta espécie gosta de briga. Tão pequeninho e indefeso... Será verdade?

25/07/2022

22 - MEU FORRÓ

 

          O vovô decidiu morar bem longe, num sítio que a gente demorava para chegar. Passava por uma estrada de terra, muitas lombadas e um montão de curvas. Era tão longe que o vovô parecia morar sozinho naquele mundo, depois de uma ponte e de um rio, pelas bandas de Montes Claros.

Mas, como atrativo para o menino e demais netos, o vovô comprou um lindo e sistemático cavalo.

Aquele cavalo habitava o sítio como um doce que atraísse a criançada.

          O cavalo parecia ser usado na lida da roça, ser de todos os netos, mas de alguma forma ficou aquela verdade que era do menino e só dele.

          No primeiro dia em que o menino, cheio de expectativas, foi conhecer o cavalo que ganhara, decidiu dar-lhe um nome pomposo.

Pensara numa coleção deles: Corcel, Thor, Trovão e até Coronel. No entanto, o vovô se adiantou ao batismo, com uma voz carinhosa e na tonalidade certa, dizendo:

          - É seu, o cavalinho, mas já veio com nome: Forró!, não é lindo?

          Ah, mas ele disse com aquele jeito de avô e o menino adorou já ganhar um cavalo com nome de fábrica. E o nome era diferente de tudo e por isto era perfeito, de certa forma se encaixando com a esquisitice do cavalo.

24/07/2022

21 - COSMOS – FUTEBOL DE RUA DA MINHA INFÂNCIA

 

O Cosmos era o único time de futebol de rua treinado por uma técnica. Isso mesmo, era uma moça que nos treinava e, embora já houvesse algum comentário sobre este pormenor, os meninos, querendo saber mais de futebol do que de preconceitos, não estavam nem aí.

Estávamos treinando duro havia dias para o confronto de domingo. No campeonato do bairro São Marcos, enfrentar o Ferradura era lutar contra a elite. Os caras tinham camisas com patrocínio, treinador bigodudo com currículo e pareciam todos loiros e de banho tomado.

O nosso Cosmos tinha um conjunto de camisas dado por um candidato a deputado federal e tinha o craque Nem. As camisas faziam tanto a propaganda do deputado que era impossível não imaginar que nosso time fosse o Vasconcelos Futebol Clube, o que, claro, era motivo de chacota.

23/07/2022

20 - #FIQUEEMCASA (SECO)

 

Era início da pandemia. Se bem que, de tanto que a quarentena se estendia, a gente acabou perdendo a noção de início, meio e fim. Mas o certo é que as rotinas começavam a mudar, o menino estava longe da escola e dos amigos há uns dias e começava a dar nas pernas e nos braços uma sensação de que era preciso fazer alguma coisa.

O menino nunca ouvira falar que fungos, musgos e folhas pudessem aparecer nas pessoas e transformar a cidade numa enorme e multicolorida floresta tropical, mas a hipótese a este ponto nem era descabida, tamanha era a proporção da inércia de todos, parados ali como troncos indecisos.

A frase que mais se ouvia e que a família do menino seguia à risca era #fiqueemcasa, assim, com hastag, para parecer uma tatuagem.

Pois bem, o menino, obediente que só ele, soube ler o mandamento e não viu em nenhum lugar da frase o impedimento de levar baldes de água para o quarto.

22/07/2022

19 - O PORTAL DAS JABUTICABAS

            Daqui debaixo dava para ver quando o papai subiu no enorme pé de jabuticaba.

Estava repleto de frutas e o verde das folhas fazia um colorido bonito com o negro das bolinhas, que quase estouravam. As jabuticabas tinham um brilho de verniz e pareciam no limite do inchaço.

Papai subiu no pé de jabuticaba, por uma entrada que ele conseguiu e sumiu. Não dava para achá-lo e foi quando o menino começou a chamar:

- Papai, desce, desce, já pegou muita jabuticaba.

Nada do papai responder, nem descer, nem resmungar de boca cheia.

Foi preciso pedir para o tio subir atrás, achar o pai e tentar cutucá-lo, para voltar, enfim.

Lá foi o tio e nada do tio.

Já eram dois no pé de jabuticaba. Não dava para ver sequer os pés dos adultos. Não dava para ouvir a voz de ninguém. Como a árvore soltava, a todo instante, uns ciscos afiados, nem dava para arregalar os olhos de jabuticaba.

- Papai, titio, desce, já deu. O menino choroso implorava. Havia uma preocupação e um medo. E se...

O menino pediu socorro à mamãe, que assistia a tudo lá de baixo.

21/07/2022

18 - KLARA E O SOL

 

Cheguei a Kazuo Ishiguro através dos textos da tradutora e crítica literária Camila Von Holdefer, que possui gosto de leitura muito semelhante ao meu.  Sou leitor do blog de Camila e posso dizer que “por sua indicação” li Não Me Abandone Jamais e O Gigante Enterrado.

Quando vi a capa de Klara e O Sol, também de Kazuo Ishiguro, estampada em seu blog, baixei sem pestanejar. No entanto, antes de iniciar realmente o livro fui ler sua crítica e me deparei surpreendentemente com um texto que desmerecia sobremaneira o livro, rotulando-o como “indefensável” para um Nobel de Literatura (2017).

Já era tarde. – Já comprei, agora vou ler, pensei. E adentrei na fantástica viagem do livro.

Confirmei a percepção de que leitura é uma experiência contextual e ímpar. Vejo que Camila não viu o que vi, desgostou do que me intrigou, desfez do que vai ficar marcado.

20/07/2022

17 - CABRUM, POW e PÁ

             Naquele dia, o menino contou ao papai que estava com medo de trovão, rojão e balão, tudo que acabava com “ão” e fazia muito barulho.

            O medo era aqui dentro da gente, mas parecia deixar tudo cá fora escuro como breu, como uma noite sem lua. Era de verdade e não era brincadeira, aquele medo. Machucava, mesmo, como espinho no pé, batida no joelho.

Era um medo de esquecer fantasias, de deixar as pistas de carrinhos de lado, de perder o sorriso por um minuto, de querer ir para casa correndo e deixar a festa. Mesmo com escorregador e guloseimas, a festa perdia a graça.

- O que fazer quando o medo é assim grandão, papai? Perguntou o menino, com cara de choro.

19/07/2022

16 - ELE

 

É hora de engajamento

Colocar a poesia numa folha

Ou numa porção de papéis picados

 

É preciso atravessar que

Ele olha no espelho e vê a farda puída

 

Sua farda não combina

 

Vê ao redor um mundo de plástico 

Em processo de envelhecimento

O amarelo é uma quebra de contrato

 

Seu poder vira pó e pode virar meme

Ninguém ri da piada

seu poder

Farelo

A insígnia ficará sem escoro

Não consegue disfarçar o rancor e medo

 

Ainda pode encontrar uma vítima ou fazer dancinhas

 

Seu rosto é diferente sem o filtro

Cada segundo é um inimigo 

É simplório colocar uma máscara

 

Encontrar alguém que minta!

 

Não afaste o espelho neste instante, sugiro para ele

O espelho está em movimento, como tudo em volta

 

Só a queda é coerente


Johnny Guimarães

18/07/2022

15 - AS MAIORES MANGUEIRAS DO MUNDO

           

Eram três grandes mangueiras na casa de vô Hugo.

Segundo o que todos diziam, as maiores mangueiras do mundo.

E vô Hugo se orgulhava de poder lustrar de quando em vez as plaquetas com as inscrições dos méritos dos pés de manga.

Imagina, todo o pódio ali no seu quintal.

Era uma fortuna os pés de manga espada, figo e sapatinho.

E por isso o dezembro chuvoso era uma festa.

A maior mangueira, que ficava em frente à casa, ao menor vento, nos assustava com fogos de artifícios que eram os pedaços de telhas esvoaçando para todo lado.

Vó violeta morria de medo.

Nós, netos, quando a telha aguentava, ficávamos em posição de partida, ouvindo o rolar das mangas pelas canaletas, e, pronto, quem pegasse a manga madura era o campeão.

Passava a chuva, que lavava a rua, mas não lavava nossas bocas e memórias de amarelo de manga. Íamos para o quintal, brincar de tudo.

17/07/2022

14 VALDO – FUTEBOL DE RUA DA MINHA INFÂNCIA

 

Que saudade do Valdo.

Era um menino engraçado, ainda se acostumando com o imenso corpo, que dera para crescer a uns anos e parecia não querer parar naquele tamanhão. Parecia ser maior que ele mesmo, mas fazia com gosto parte do nosso pequeno time.

Éramos o Binha, Dengo, Tande, Berê (o craque), Nêm, Célio e Valdo.

E todos estávamos esperando aquele dia.

Seria a final do jogo da rua e disputaríamos o título com o pessoal da rua de baixo.

Pois bem, começamos o jogo perdendo e eu já tinha tomado dois gols.

O Nêm, que corria muito e tinha apelido de Torresmo, empatou, com dois sorrisos que só ele.

Lá pelo meio do segundo tempo, vi Valdo sozinho e arremessei a bola na direção daquela montanha-menino. Ele dominou, driblou o zagueiro que quis impedir e chutou forte.

Forte, tão forte que o golaço pareceu covardia com a meninada.