O Cosmos era o único time de futebol
de rua treinado por uma técnica. Isso mesmo, era uma moça que nos treinava e,
embora já houvesse algum comentário sobre este pormenor, os meninos, querendo
saber mais de futebol do que de preconceitos, não estavam nem aí.
Estávamos treinando duro havia dias
para o confronto de domingo. No campeonato do bairro São Marcos, enfrentar o Ferradura
era lutar contra a elite. Os caras tinham camisas com patrocínio, treinador bigodudo
com currículo e pareciam todos loiros e de banho tomado.
O nosso Cosmos tinha um conjunto de
camisas dado por um candidato a deputado federal e tinha o craque Nem. As
camisas faziam tanto a propaganda do deputado que era impossível não imaginar
que nosso time fosse o Vasconcelos Futebol Clube, o que, claro, era motivo de
chacota.
Foi minha vó que bateu na porta do comitê
de campanha e conseguiu o conjunto de camisas com o nome do candidato. As
camisas, um pouco grandes para nossa magreza, eram mais uma faixa publicitária
do que um uniforme. Para completar a alegoria, o Nem lidava com o ápice de uma
micose espalhada por todo o corpo que ruía sua autoestima. A micose rendara-lhe
o apelido de Torresmo e, sem tratamento, estava longe de acabar.
Nem, nosso camisa 10, portanto, sofria
com a consequência do mergulho na Lagoa da Pampulha, deixando o time com poucas
chances.
Mas seguíamos na esperança de vencer
o Ferradura até a véspera do jogo, encorajados pela voz feminina de nossa
comandante.
Acontece que a realidade quando se
apresenta tem jogadores demais e parece bater duro como martelo nos dedos.
E por isso começamos o jogo nervosos
e desentrosados e já perdíamos por um a zero, sem nem perceber como tomei
aquele gol.
Seguramos vinte minutos o placar, até
que houve uma falta perto da área. Imaginei que podia agarrar e afastei a
barreira. O craque do Ferradura tomou distância e lançou outro chute no ângulo.
Saltei como se esquecesse a
importância dos olhos da vizinhança. Saltei como se escrevesse por um caminho
seguro, como se saltasse numa piscina azul e morna. Saltei como um gato
vira-lata e agarrei direitinho aquela bola coquinho, impedindo o segundo gol
dos metidos.
O placar de 1 x 0 era, até então, um
alívio.
Fomos para o segundo tempo.
O Tande entrou bem no jogo e o Nem,
ou Torresmo, se mostrou grande torcedor na reserva. Tande conseguiu a proeza de
empatar o jogo com um gol de barriga.
O Dengo, mesmo amarradinho, conseguiu
marcar o dele. Ganhávamos por dois a um e não acreditávamos. Nossa técnica,
sempre tão severa, deixava alguns sorrisos em forma de palmas chegar a nossos
ouvidos. Éramos pura empolgação àquela hora.
No último minuto do segundo tempo, o Ferradura
Futebol Clube conseguiu um contra-ataque veloz. Em dois passos, o filho do dono
do time estava a poucos metros da área, e deixara o Binha, nosso gordinho zagueiro,
deitado na rua. Veio em minha direção e, antes de atirar, disse maliciosamente:
- Pega goleirinho!
E soltou um bicudo daqueles.
O chute veio forte como o do meu pai.
Aquela defesa, se conseguisse, talvez fosse minha convocação para o Ferradura,
pensei por um segundo.
Saltei e vi que meus reflexos eram de
outro mundo.
Fiz o que nem dei notícia.
A defesa conseguiu segurar a vitória
do domingo e a felicidade eterna da galera.
Quem viu a defesa, até hoje me
respeita.
Nunca fui convocado para o Ferradura,
que era um time de meninos penteados e de unhas cortadas.
O Cosmos, que foi imortal naquela
tarde, teve vida curta na federação dos times de rua do bairro São Marcos. Durou
pouco, menos do que a micose do Nem.
Ando sempre com uma bolinha
Na mão.
Qualquer tropicão,
Largo o mundo
E abraço
A bola.