Páginas

23/07/2022

20 - #FIQUEEMCASA (SECO)

 

Era início da pandemia. Se bem que, de tanto que a quarentena se estendia, a gente acabou perdendo a noção de início, meio e fim. Mas o certo é que as rotinas começavam a mudar, o menino estava longe da escola e dos amigos há uns dias e começava a dar nas pernas e nos braços uma sensação de que era preciso fazer alguma coisa.

O menino nunca ouvira falar que fungos, musgos e folhas pudessem aparecer nas pessoas e transformar a cidade numa enorme e multicolorida floresta tropical, mas a hipótese a este ponto nem era descabida, tamanha era a proporção da inércia de todos, parados ali como troncos indecisos.

A frase que mais se ouvia e que a família do menino seguia à risca era #fiqueemcasa, assim, com hastag, para parecer uma tatuagem.

Pois bem, o menino, obediente que só ele, soube ler o mandamento e não viu em nenhum lugar da frase o impedimento de levar baldes de água para o quarto.

#fiqueemcasa não contraditava com #baldesnoquarto e, de certa forma, até mesmo auxiliava aquela tarefa difícil de se estagnar num apartamento de capital.

#fiqueemcasa não trazia uma proibição de se imaginar, com auxílio necessário de muita água, num arquipélago privilegiado da costa brasileira.

Decidido, foi assim que o menino encheu o primeiro balde e passou pela sala a caminho do quarto. Aproveitou-se do descuido momentâneo do pai, que, agora em home office, parecia mergulhado no computador, e foi começar a aventura.

Eram muitos bichos marinhos naquele quarto: baleia, tubarão martelo, golfinhos, peixinhos pequenos, peixões, tartarugas marinhas e alguns dragões (ops!) que no parecer do menino pareciam gostar de água.

Não seria justo lançar o #fiqueemcasa para aquela parcela considerável da fauna marinha sem o essencial, a óbvia quantidade equivalente de água.

E o menino pegou o segundo balde.

E o menino passou de levinho perto do pedacinho do novo escritório improvisado do pai com o terceiro, quarto e quinto baldes.


Um observador se perguntaria se os tantos litros de água coletados já não seriam suficientes para formar aquele trecho menor do oceano atlântico, enchendo todo o quarto.

Outro observador talvez tivesse visto de esgueira o que o pai desatento só viu quando era tarde demais.

E quando o distraído pai viu e ouviu a presença da água no apartamento à fora, em corredeiras, veio o grito, na forma de uma bronca severa, quase um urro:

- Que chão molhado é este? Meu Deus do céu!!!!

Diante do susto, o pai não teve outra opção que, de repente, deixar o computador na mesa (agora, vítima fácil da irmãzinha mais nova do menino) e correr pelo corredor, abrindo de supetão a porta do quartinho.

- Meu Deus! - foram por minutos as últimas palavras do pai, que se viu engolido por uma onda gigante.

Os brinquedos convencionais, carrinhos, instrumentos musicais, bonecas e peças de montar boiavam sobre o mar, numa profusão de cores bonita de se ver.

Os brinquedos marinhos, estes, com um sorriso escondido sob a camada fina de plástico, eram cúmplices do menino.

Algumas almofadas, parece que pelo efeito do isopor ou da bagunça, afundavam e voltavam a flutuar.

Havia pequenas ondas que impediam a visão perfeita daquele húmido carnaval.

O pai, recuperado o fôlego do choque, gritou pelo menino e deu algumas braçadas nadando até a cama, onde se encontraram. Pularam os dois, o pai e o menino, no cesto de brinquedo que flutuava e esperaram atônitos a água escorrer pela porta aberta e a maré baixar naquele quarto.

Maré baixa, os brinquedos e objetos sedimentados sobre o chão, todos com uma película inesquecível de água, foi hora da bronca:

- Onde já se viu trazer água, tanta água para o quarto, menino?

O menino, educado, daqueles que secam entre os dedinhos do pé depois do banho, pedem para escovar os dentes e lavam as mãos sempre que suspeitam, argumentou:

- Mas, papai, criança brinca. Amanhã posso brincar de novo?

O pai olhou para o filhote ainda encharcado e, com a necessidade de educar, declarou:

- Com água, não, Pedro! Amanhã é a vez dos bichinhos que voam.


Johnny Guimarães