Páginas

21/07/2022

18 - KLARA E O SOL

 

Cheguei a Kazuo Ishiguro através dos textos da tradutora e crítica literária Camila Von Holdefer, que possui gosto de leitura muito semelhante ao meu.  Sou leitor do blog de Camila e posso dizer que “por sua indicação” li Não Me Abandone Jamais e O Gigante Enterrado.

Quando vi a capa de Klara e O Sol, também de Kazuo Ishiguro, estampada em seu blog, baixei sem pestanejar. No entanto, antes de iniciar realmente o livro fui ler sua crítica e me deparei surpreendentemente com um texto que desmerecia sobremaneira o livro, rotulando-o como “indefensável” para um Nobel de Literatura (2017).

Já era tarde. – Já comprei, agora vou ler, pensei. E adentrei na fantástica viagem do livro.

Confirmei a percepção de que leitura é uma experiência contextual e ímpar. Vejo que Camila não viu o que vi, desgostou do que me intrigou, desfez do que vai ficar marcado.

Em primeiro lugar, é necessário dizer que Kazuo Ishiguro é um escritor que cria um ambiente de inquietação. Ressalto, inclusive, que, se o leitor não estiver num período de segurança emocional, a leitura pode ser indigesta. Tenho realmente um medo que antecede o caminho de suas páginas. O fantástico, o ficcional científico, a antecipação lógica de uma época é tratada de uma forma que me traz sensações muito próximas da vivência que seria real, mexendo de alguma forma com minha sensibilidade às vezes aflorada. Paradoxalmente, esta sensação de estranhamento me atrai e não é à toa que já estou com Os Vestígios do Dia, vencedor do Booker Prize de 1989, na fila de leitura.

Em Klara e o Sol, livro que tem como pano de fundo um equivalente a um robô aprimorado com inteligência artificial (AA) a tomar conta de uma criança enferma (de uma enfermidade possivelmente incurável e fatal), o escritor traz alguns questionamentos que a humanidade ainda não atravessou:


Teremos robôs como cuidadores de nossos filhos?

A inteligência artificial criará suas crenças? Estará a inteligência artificial fadada a ter seus próprios deuses a suportar a incompletude de respostas?

Será possível a modificação via DNA dos novos humanos? E quem não fizer a opção por esta modificação, será discriminado? 

O que fazer com a inteligência artificial quando não for mais útil ou houver um equivalente mais atualizado? Haverá algo próximo a um sofrimento da inteligência artificial descartada de seu papel de utilidade?

 As perspectivas ficcionais do autor são entrelaçadas numa trama que realmente consegue me inserir no universo de angústia dos personagens. A solidão da AA Klara, sua desolação e a indiferença disfarçada de que é vítima, sua entrega quase mecânica e obrigatória à causa dos humanos, sua esperança de cura da dor e paralelo alheamento à mesma dor, me tocaram.  

Outra questão que Kazuo traz de uma forma peculiar no livro é a dúvida sobre a real existência de um “eu” singular e titular de uma individualidade não repetível. Seria possível, com um aprimorado grau de observação e mimetismo, a partir de uma inteligência artificial, a continuidade do que entendemos por individualidade e suas idiossincrasias? Seria possível a cópia do que entendemos como eu/alma (aqui, alma como contraponto a eu/corpo)? Depois de carregar a dúvida por boa parte do livro, parece que, neste caso, o autor responde de forma negativa. E neste ponto sou obrigado a concordar com Camila, foi superficial a resposta para questão tão intrincada e nada óbvia.

Para o autor, a redoma da individualidade dar-se-ia não pela qualidade de ser o que se é de determinada forma, mas pela percepção e correspondência a partir do olhar “das pessoas que a amavam”. Ora, claro que se houvesse a possibilidade da continuidade por uma AA de determinada individualidade seria uma continuidade numa nova vivência, como também seria se a mesma individualidade tivesse a continuidade alterada por algum trauma ou modificação significativa do entorno ou de si mesmo. A resposta simples do autor matou a possibilidade de um entrada mais densa na questão, a meu ver.

De qualquer forma, gostei do livro que trouxe inquietude para meus dias e influenciou minha visão de mundo. Indico a leitura, observando que a sensação é próxima ao divertimento numa montanha russa. Há a expectativa, o medo, o sorriso, o desconforto e o alívio prazeroso ao fechar a última página.  

Johnny Guimarães