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04/08/2022

29 - TORTO ARADO


Assim como uma faca

que sem bolso ou bainha

se transformasse em parte

de vossa anatomia

João Cabral


          O livro Torto Arado (2019) de Itamar Vieira Júnior me tomou como a um cavalo.

O livro de início me marcou pelo ritmo da trama, quando de um só fôlego já me descobri numa magia intensa de uma sôfrega leitura. Capítulos iniciais feitos de sangue e faca. A sensação é de perceber o gosto quente de cada cena. Na verdade, a intensidade do livro é da capa ao fim. Também é da capa ao fim o registro da luta de uma comunidade quilombola pelo direito à existência digna, a um teto firme sobre a cabeça e a um pedaço de terra sob os pés, ao fruto de seu trabalho.

         O livro situa o leitor num cenário onde a vida é vivida por uma família sem garantias. Uma comunidade riquíssima de encantos, suores e dores, sem o menor título de propriedade. Os poucos pertences que restam vão sendo usurpados pelo braço do patrão branco página por página, até o último bem de valor, material ou imaterial (até mesmo a crença e a possibilidade de sepultamento são vilipendiados).

É de uma tensão surpreendente a descrição da chegada da evangelização forçada às portas dos quilombolas (que tem inclusive o status de quilombolas questionado), expulsando os encantados (entidades trazidas pelos negros por suas memórias ancestrais e resistentes, já mescladas com santos e ritos católicos).

Não é à toa que a personagem principal do livro se vê subtraída da língua (literalmente! - do órgão responsável pela deglutição, mas essencial à fala, à revolta, ao discurso e ao xingamento), já nas primeiras páginas.

Sim, as duas principais narradoras do livro – Bibiana e Belonísia - que reverberam os gritos e clamores de suas casas não possuem língua ou a tem cortada.

         Itamar Vieira Júnior cria personagens de muita força por todo o livro. É assim que Zeca Chapéu Grande, curador e verdadeiro pai espiritual da comunidade, está sempre presente nas mortes, doenças e festas dos quilombolas, conduzindo-nos a todos. É ele quem recebe, como cavalo, alguns encantados, dentre eles, com certo constrangimento, mas nenhuma negativa, Santa Bárbara, Iansã, a dona da noite. Veste saias e cores, recebe a encantada e mantem viva a presença do jarê (celebração religiosa de matriz africana presente na região da Chapada Diamantina - Bahia). Sua esposa, Salustiana Nicolau, a Salu, companheira fiel, forte e carametade do guardião, tem o condão de, como parideira, receber os rebentos e encaminhar os anjinhos (que comumente não resistem aos poucos recursos do ato e à desnutrição prematura).

É esta Salu que, já após a morte por causas naturais (e exaustão) de Zeca Chapéu Grande e da morte encomendada do líder revolucionário Severo, diante da percepção do apagamento da sua crença (talvez única herança do clã), vira as costas e fecha (quase flecha) a porta à pastora/missionária/usurpadora.

         O autor nos revela o segredo de uma faca com cabo de marfim que, furtado outrora, passara a fazer parte do destino da família, atravessando as gerações em busca de justiça e sem esperar perdão.

É a mesma faca que marca as duas irmãs Bibiana e Belonísia - no início, que encara o macho violento e tóxico e faz cessar o abuso – no meio, que se vinga impiedosamente da morte de Severo - já no fim desta linda história.

         Severo é o marido reto de Bibiana e traz a consciência de uma geração que se rebela, inclusive contra a escravidão estrutural arraigada na submissão de seus pais. Como tantos representantes de grupos minoritários, Severo também é covardemente assassinado por trazer consigo uma língua perfeita, um discurso lapidado e inquestionável. Severo termina o livro morto mas presente.

         A violência é a forma de se sobrepor à razão da justiça pelos direitos humanos.

         Neste aspecto, vemos o livro trazer as mesmas artimanhas do nosso cotidiano para mascarar a grandiosidade de nosso herói, maculando sua imagem através da atuação de uma polícia corrupta e instrumentalizada para a segregação.

         O livro atravessa nossos dias como uma faca só lâmina, nos transportando para os diversos lugares de personagens subjugados pelo sistema, mas salvos pela construção literária e libertária de Itamar Vieira Júnior.

         Por tanta riqueza, que neste texto vejo-me incapaz de captar sequer um brilho, recomendo firmemente a leitura, viagem e ensinamentos que a narrativa proporciona.


Johnny Guimarães