que sem bolso ou bainha
se transformasse em parte
de vossa anatomia
João Cabral
O livro Torto Arado (2019) de Itamar Vieira Júnior me tomou como a um cavalo.
O livro de início me marcou pelo
ritmo da trama, quando de um só fôlego já me descobri numa
magia intensa de uma sôfrega leitura. Capítulos iniciais feitos de sangue e
faca. A sensação é de perceber o gosto quente de cada cena. Na verdade, a
intensidade do livro é da capa ao fim. Também é da capa ao fim o registro da
luta de uma comunidade quilombola pelo direito à existência digna, a um teto
firme sobre a cabeça e a um pedaço de terra sob os pés, ao fruto de seu
trabalho.
O
livro situa o leitor num cenário onde a vida é vivida por uma família sem garantias.
Uma comunidade riquíssima de encantos, suores e dores, sem o menor título de
propriedade. Os poucos pertences que restam vão sendo usurpados pelo braço do
patrão branco página por página, até o último bem de valor, material ou
imaterial (até mesmo a crença e a possibilidade de sepultamento são
vilipendiados).
É
de uma tensão surpreendente a descrição da chegada da evangelização forçada às
portas dos quilombolas (que tem inclusive o status
de quilombolas questionado), expulsando os encantados (entidades trazidas pelos
negros por suas memórias ancestrais e resistentes, já mescladas com santos e
ritos católicos).
Não
é à toa que a personagem principal do livro se vê subtraída da língua
(literalmente! - do órgão responsável pela deglutição, mas essencial à fala, à
revolta, ao discurso e ao xingamento), já nas primeiras páginas.
Sim,
as duas principais narradoras do livro – Bibiana e Belonísia - que reverberam
os gritos e clamores de suas casas não possuem língua ou a tem cortada.
Itamar Vieira Júnior cria personagens de muita força por
todo o livro. É assim que Zeca Chapéu Grande, curador e verdadeiro pai
espiritual da comunidade, está sempre presente nas mortes, doenças e festas dos
quilombolas, conduzindo-nos a todos. É ele quem recebe, como cavalo, alguns
encantados, dentre eles, com certo constrangimento, mas nenhuma negativa, Santa
Bárbara, Iansã, a dona da noite. Veste saias e cores, recebe a encantada e
mantem viva a presença do jarê (celebração religiosa de matriz africana
presente na região da Chapada Diamantina - Bahia). Sua esposa, Salustiana
Nicolau, a Salu, companheira fiel, forte e carametade do guardião, tem o condão
de, como parideira, receber os rebentos e encaminhar os anjinhos (que comumente
não resistem aos poucos recursos do ato e à desnutrição prematura).
É
esta Salu que, já após a morte por causas naturais (e exaustão) de Zeca Chapéu
Grande e da morte encomendada do líder revolucionário Severo, diante da
percepção do apagamento da sua crença (talvez única herança do clã), vira as
costas e fecha (quase flecha) a porta à pastora/missionária/usurpadora.
O autor nos revela o segredo de uma faca com cabo de marfim
que, furtado outrora, passara a fazer parte do destino da família, atravessando
as gerações em busca de justiça e sem esperar perdão.
É
a mesma faca que marca as duas irmãs Bibiana e Belonísia - no início, que
encara o macho violento e tóxico e faz cessar o abuso – no meio, que se vinga
impiedosamente da morte de Severo - já no fim desta linda história.
Severo é o marido reto de Bibiana e traz a consciência de
uma geração que se rebela, inclusive contra a escravidão estrutural arraigada
na submissão de seus pais. Como tantos representantes de grupos minoritários,
Severo também é covardemente assassinado por trazer consigo uma língua
perfeita, um discurso lapidado e inquestionável. Severo termina o livro morto
mas presente.
A violência é a forma de se sobrepor à razão da justiça
pelos direitos humanos.
Neste aspecto, vemos o livro trazer as mesmas artimanhas do
nosso cotidiano para mascarar a grandiosidade de nosso herói, maculando sua
imagem através da atuação de uma polícia corrupta e instrumentalizada para a
segregação.
O livro atravessa nossos dias como uma faca só lâmina, nos
transportando para os diversos lugares de personagens subjugados pelo sistema,
mas salvos pela construção literária e libertária de Itamar Vieira Júnior.
Por tanta riqueza, que neste texto vejo-me incapaz de captar
sequer um brilho, recomendo firmemente a leitura, viagem e ensinamentos que a
narrativa proporciona.