Pouco
para contar. Apenas discutíamos o sequestro diário de nosso recato, ou como
melhor diria Nélson Rodrigues, “o túmulo do pudor”, o ônibus apinhado. Sim!,
todos os dias são pernas que se abespinham, línguas em diagonal, caretas
impossíveis e uma sacola repleta de mau-humor.
Tudo
acontece em pouca distância e muito tempo em nossa velha conhecida, a vetusta e
malquerida condução. Não há exemplo maior de ineficiência do que o transporte
público brasileiro das grandes cidades.
Pois
bem, falávamos (modo de dizer, uma vez que do punhado de passageiros ali
sofrendo, só um resmungava) num ônibus. Sobre o quê? Óbvio: sobre a evolução da
espécie humana.
-
“Meus Deus!, seria este o objetivo final de nossa mutação? Então, deixamos a
curvatura animalesca, atingimos a elegante postura ereta, apenas para melhor
cabermos nestas lotações urbanas?! Não daria em outro sucesso o evolucionismo,
senão nessa malfadada sina de ocuparmos, como palitos, um espaço
definitivamente menor do que a soma de nossos corpos? Pois surpreendemos os
darwinistas e, além, acabaremos por matar Newton e aquela velha história de um
certo espaço, um certo corpo.”
Assim,
choramingava meu companheiro de suplício. Está entendido que não o via, mas de
alguma maneira intuía que o destinatário daquela lamúria não era outro, era eu
mesmo.
Não
seria mais fácil pedir licença ou me dar um empurrão? Ou, no caso do culto e
pedante citadino, dizer “por obséquio”?
Articulei
uma secreta resposta com a beira da boca, apertando o vulgar palavrão como numa
máquina manual de fazer pastel e dei o sinal de quem quer a próxima parada. Não
queria, mas desci de raiva.
Já
na calçada vazia, encontro um colega que, por acaso, também ouvira a palestra
ambulante do usuário irritadiço. Seguíamos pelo mesmo caminho, quando o infeliz
(apenas colega), completando meu dia, reclamou sem prévias:
-
É, ele está vestido de razão. Transporte coletivo: uma madeixa urbana!
Madeixa...
Por um segundo, lembrei-me de Tomás Antônio Gonzaga e sua vasta cabeleira.
É
brincadeira? Há dias que são noites... O que dizer?
Apenas:
-
Cuidado, meu caro. Cuidado ao cortar suas mazelas.