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07/08/2022

31 - O DESCANSO DE MINHA RETINA


Creio que um velho amigo ficou louco. Ou assim aconteceu, ou, mais do que amigo meu, o desvirtuado é um grande piadista. Imaginem que agora passo remoendo meus sagrados vinte e cinco minutos no ônibus (em dias sem azar e chuva) com uma só ideia dele, do doido: que o ofício da leitura no coletivo causa o anárquico mal do deslocamento da retina.

Contesto sua ideia com força de mula. E até mesmo digo que de nada mais se trata do que simples boato de incultos.

Vinte e cinco minutos de ida, vinte e cinco minutos de volta, e lá se vão porções imensas furtadas da minha vida.

Que fazer se a própria retina clama descanso nas páginas de um bom livro?

Além da necessidade que me abate, além do desperdício cronológico contra o qual luto, um outro maciço argumento: se o deslocamento realmente nos ferisse em ferinas cutiladas, traumáticos empurrões, o que seria, meu Deus, desses milhares de evangélicos, que outra coisa não fazem senão ler, ler e ler os sagrados textos, onde quer que lhes apareçam? Se é que leem e não fazem um santo disfarce.

Por outra, e o destino – já per si incerto – dos perenes vestibulandos de nossa capital, os quais, quando não leem, despistam, numa possível falsa erudição (por favor, perdoem minha língua), invejada pelos tantos quantos intelectuais encantoados pela cidade.

Uma observação: há algo mais erudito do que um destemido vestibulando com seu um só volume em punho? “Temo o homem de apenas um livro”, poderão citar.

Está dito. Ainda que me apresentem teses, provando os reais malefícios da leitura indigesta, empaco.

Ainda que sofra sintomas que me contrariem, empaco.

O que não me apraz é perder este tempo de joia, a não ser com alguma seletas e trêmulas linhas. Pois, num chavão, mais vale um livro na mão que meu tempo pela janela.