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22/08/2022

47 - BALAIO DE DIREITOS


Direito à herança, a todos os centavos sem o sorriso dele, o toque forte e seguro, o bigode já grisalho de tanta entrega.

A todos os centavos, sem sua graça e força, sem a presença junto aos bichos, junto à gente. Sem a graça de seu sorriso, o toque e a voz rouca. 

Seu sorriso puxava a gente para a alegria que não monetiza. Não foi monetário, este perdulário de alegrias.

Direito aos centavos que restam depois dessa imensa perda. Incalculável é esta dor inflacionária, absurda. 

O código civil não é do mundo da dor, não se sensibiliza, não chora comigo, apenas dita um rito inerte. Não percebe que não preenche nada.

Direito aos vinténs ao final do mês. 

Deste mês que não passa, que se mistura a outros meses, numa invasão perene e fria.

Em caso de gravidez, à licença paternidade, 

que vai doer, como dói um buraco sem perspectivas de fim. 

Como vai doer a inexistência de um passeio a cavalo com os netos. 

Como vai doer o som dos cavalos, calmos, com cuidado e prudência, num vazio. 

Ele não conhecerá a neta que não teve, a filha que eu não tinha à época de sua partida. Ele não perceberá como esta ausência é sentida. Não terei como dizer a ele, ainda que numa briga sincera.

Direito à privacidade,

Que eu guardo na recôndita gaveta do meu quarto,

Junto com alguns ilícitos insuspeitos, com algumas cartas e palavras dele, que agora consomem meus poemas.

Direito de ir e voltar arrependido,

Também de rir de algumas cretinas opiniões.

O luto é um espaço sensível, o corte em mim é fácil e estou num palco, suscetível.

Direito ao sigilo de minhas correspondências,

Por conveniência, beijadas com superbonder.

Quem recebeu cartas dele não entende o sigilo, suas cartas querem ser abertas, expostas, florescem.

Quem não recebeu cartas dele não entende a metamorfose. Sua caligrafia faz um amálgama com sua postura (de família) ereta, firme e doce de pai ou passarinho. Suas cartas não desligam a luz, não se ofuscam em qualquer gaveta.

Direito de resposta,

Na mesma medida do tapa. Foi ele quem me ensinou, o dedo em riste, sobre o púlpito da razão e ética, inabalável e tão frágil, meu Deus... 

Foi-se sem a minha resposta, num átimo, num segundo do tamanho do mar, ou em minutos comprimidos, inesperadamente cruéis.

Direito à grave pergunta da vida,

Torcida como um cavalo marinho. Incógnita.

A minha pergunta para a vida está num canto, repetindo a mesma frase sem sentido, falando sozinha.

E mais uma mão cheia

De direitos, direitos e direitos.

Sou um balaio destes direitos

Johnny Guimarães