Foi
com o GATE – Grupamento de Ações Táticas Especiais da Polícia Militar de Minas Gerais que fizemos treinamento
naqueles dias. Era época de lançamento do Tropa de Elite I, e, de alguma forma,
aquele filme, ainda que não intencionalmente, mexeu com o brio da polícia.
Longe
de mim dizer que este aspecto foi positivo, mas é certo que estavam todos mais
alertas, dispostos ao embate e cada um querendo trazer para si alguma revolta
do capitão Nascimento ou a disposição do aspirante Neto. Eram comuns sessões de
polícias para ver e comentar o filme. Algumas falas épicas da película passaram,
desde então, a fazer parte da gíria operacional.
Foi
neste contexto que eu me vi naquela linha de tiro, num estande, empolgado,
treinando o manuseio e disparo de fuzis. Sim, fuzis de verdade, como no filme.
Difícil
me ver poeta e fuzileiro ao mesmo tempo?
Não
é?
Mas,
voltando. A linha de tiro é rígida com a disciplina, sobretudo quando o
exercício é com bala real, e qualquer descuido com a segurança pode te custar,
nos casos leves, uma sequência vexatória de flexões, ou, nos casos graves, o
desligamento do curso.
O
instrutor é o mandachuva da linha de tiro e é preciso ter ouvidos abertos,
olhos perspicazes e uma concentração que não te permita pagar aquele mico. Ah,
e é bom não fazer perguntas - fica a dica.
Se
a dúvida trouxer a suspeita de questionamento quanto à técnica adotada, pode
cheirar mal. Ainda que a certeza que você tenha quanto à crítica que faça seja
lógica e comprovada, será sempre impertinente.
Fique
calado, portanto.
Para
evidenciar a autoridade, geralmente o instrutor usa um apito para reforçar a voz
de comando. Sim, como os adestradores. É preciso ser duro com os recrutas, que,
como sabem, podem não merecer a roupa preta e se mostrar uns verdadeiros
moleques.
Por
estas e outras é que a linha de tiro, para mim, é um momento tenso desde a
academia de polícia da Polícia Federal. Sempre tenho câimbras nos malqueridos dias de treino.
Neste
dia não foi diferente. E o instrutor, oficial da honrosa Polícia Militar
mineira, dava as ordens dos tiros e tinha autoridade para controlar até mesmo
nossa respiração. Eu, nervoso por também representar outro órgão de segurança
entre tantos PMs, com a responsabilidade de não expor em qualquer erro a briosa
PF, ouvia, forte na linha avançada, como um coroinha que ouvisse uma missa, a
ordem do comandante da linha.
Nem
piscava. Braços duros. Perna tensa. Torcicolo e sede. Só mexia os olhos.
E
de repente:
- Todos a postos??? Atenção, alínea!!!
–
ordenou o instrutor.
Calma
aí. Mas não era uma linha de tiro? “Alínea”? Não seria uma linha? Puxa vida. Alínea
não é a primeira linha de um parágrafo ou uma subdivisão dos artigos de uma lei?
Disso eu sei, poxa. Não pode ser “alínea”, não pode. Vou dizer. Vou perguntar. Levantando
o dedo ... Deixa disso. Olho no alvo. Atenção. Fica quieto.
- 2 disparos!!! Ao meu comando!!! –
ordenou o instrutor.
Nossa,
agora vai bala. Não posso errar a sequência da volta do fuzil. Não posso
apontar a arma na direção de ninguém. Não posso por o dedo no gatilho antes da
hora. Mas é certo que estou distraído pela “alínea”. E se eu der gatilhada como
naquele outro dia? Passo o fuzil apontando para o chão, como se fosse fazer o
semicírculo do buraco da partida de bolinha de gude. Tenho que atirar somente
depois da arma estar no centro do alvo. Não posso me assustar com o barulho dos
tiros dos colegas. E se a arma falhar? O que faço? Esta gandola faz um calor
danado e essa bota pesa. E se eu não tiver municiado a arma?
- Uerê!!! –
ordenou o instrutor.
Calma
aí. Agora vou perguntar. Será que dá tempo de perguntar antes do próximo grito?
Mas a boca dele já está preparada para outro disparo...
-Up, up!!! –
ordenou o instrutor.
Agora eu pergunto, ah, eu pergunto: Uerê??? Que p... é essa? Será que há uma técnica indígena nesta manobra? Será que a antiga guerra do Paraguai trouxe alguma herança para esta sequência de manuseio de fuzis? Seria uma homenagem aos povos originários? Mas nem sei se, além de flechas, fuzis havia.
Uerê???
Vou levantar a mão na linha de tiro.
Professor... quer dizer, instrutor. Não, não posso perguntar.
- Uerê!!! –
ordenou o instrutor.
De
novo. É, não estou surdo com os tiros. Não é minha enxaqueca vestibular de hora
errada. Eu ouvi o Uerê, meu Deus. Vou ter que perguntar. Mas lá vem outra
ordem...
-Up, up!!!
Agora
vou perguntar:
-
Caríssimo instrutor, sem querer atrapalhar vossa linha de tiro, alínea de tiro,
quer dizer, me desculpe... vou perguntar é nada, coisíssima nenhuma! Vou ficar
quieto aqui.
-Uerê!!! Up, up!!! –
ordenou o instrutor.
De
novo e de novo e de novo. Até a munição do fuzil acabar.
E
meus tiros foram surpreendentemente bons. Adiantei-me e fui até à silhueta
utilizada como alvo sem questionar absolutamente nada, nadinha. Apenas tampei
os furos que fiz no papel com as ombreias que me deram e fiquei calado, como se
nada passasse por minha cabeça. Lembrei-me do professor Sacconi dizendo das
vírgulas, “na dúvida, evite-as, passará por esquecimento e não por algo menos
lisonjeiro”, e me senti uma vírgula naquela alínea.
Pois
bem. Após o ocorrido, comentei com dois colegas que presenciaram o fato e,
depois de uma ligeira e hilária investigação, chegamos à mesma conclusão:
É
certo que, quando um lote de fuzis foi importado desde os Estados Unidos, houve
um treinamento realizado por um gringo, perito fornecido pela própria fábrica
americana e, eis que o instrutor, que à época era o boss da “alínea” de tiro, teria dito, firme e de forma exemplar:
-
All ready? Up, up!
-
All ready? Up, up!
e...
All
ready
virou Uerê.
Uma
corruptela mineira da linguagem a favor do combate à criminalidade. O inglês e
o tupi-guarani se unindo, como arco e flecha.
Sem
mais. Nem precisamos perguntar para saber.
Com isto, nada de flexões por hoje.