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23/08/2022

48 - OLHOS ABERTOS

         O seu olhar melhora o meu

Arnaldo Antunes

 


Preciso de roupas, rápido. Por isto busco o personagem de um conto meu antigo (
Relato sob o outono), e suas vestes sem cor e a paisagem de madrugada, folhas secas e brisa persistente. Olho firme para a figura que criei e vejo que desenhá-la tenha sido talvez um alento de buscar um canto sem olhos, onde os movimentos são apenas os de qualquer moinho. Estar ali no co(a)nto, seria estar sozinho.

Até que ponto?

Minhas palavras não traçaram uma página orgulhosa de si mesma? Orgulho por atingir algo em relação a algum leitor. Como se tivesse coberta por minuciosa maquiagem? Não são os olhos do leitor o combustível que mantém aceso aquele texto? Não preciso de um filtro ou adequação?

Mais. Ao dizer sobre o conto, nessa releitura, não ressuscito o morto com a colaboração do leitor que persiste até este ponto?

Então deságuo novamente na constatação de que a minha existência, não importa qual roupagem, personagem, maquiagem ou fantasia só se realiza com o olhar vizinho. Imagino algo semelhante a um caleidoscópio de olhos, retalho de muitas cores, difícil de suportar... mas único caminho.

O olhar de Narciso é uma opaca queda infinita. O afogamento se dá pelo peso contido na caixa de concreto do “eu”, sem frestas, andando em círculos e construindo castelos monstros repletos de quinas e pontas afiadas. Se você não percebe a beleza do abismo de olhos em volta, o afogamento é inevitável. O que seria revelação e beleza se torna morte.  

Imagino, como vi brilhar no centro das reuniões de terça num portal que se abre lá em Varginha (Grupo Minutal de discussão), que o olhar do outro me compartilha e engole. Que quando olho o outro me enxergo e admiro, precisamente por ver a potência de espectros que carrego.

Não quero me resumir a mim. E se passo a vida inteira como uma ostra, tecendo pedras tão sólidas e inquebrantáveis é porque carrego comigo a mania de andar em círculos e rebanho. Tropeço.

Todos estamos em queda. Todos os olhos estão juntos e em queda. Quando tudo gira, não adianta buscar algo que esteja firme, melhor se abraçar a uma música do que a uma pilastra.

Mas vi! outros olhos me olhando e sai correndo para um canto com dez paredes e nenhuma janela. Fechei a porta, acendi a luz e lá fiquei tremendo as pernas, com olhos fechados, sozinho, fugindo. 

Apenas um assovio sorri que lembrasse a minha infância.

Foi quando me deu uma vontade louca de tirar toda a roupa, óculos e sapatos, quebrar os guarda-chuvas e sair correndo pelos pares de olhos que se abriam.

Foi o que fiz por instantes.  

@Johnnysio


     
Texto escrito em 12/03/11 e publicado no blog Minutal